Presidente da ADUENF publica artigo sobre atrasos salariais como "política para deixar" do governo do Rio de Janeiro



Deixar morrer como política de governo: os aposentados e servidores do Rio de Janeiro como um mero aborrecimento


Por Luciane Silva*


“os atrasos não configuram vexame, sofrimento ou humilhação, não interferem no psicológico dos servidores. O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar, mero aborrecimento, em princípio não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”.
Sentença judicial sobre ação individual por não recebimento de salário, Rio de Janeiro, 2016/2017

“o direito, a paz, as leis nasceram no sangue e na lama das batalhas”
Michel Foucault, Em defesa da sociedade, 1999

Dona Maria fez uso da palavra por volta das 10:30 da manhã do dia 10 de julho, na avenida Presidente Vargas, cercada por policiais militares armados com fuzis. Uma população de aproximadamente 150 pessoas, em sua grande maioria, servidores públicos, acompanharam sua declaração. Com sua cesta de amendoins, contou-nos sobre o que tem vivido nos meses recentes. Voz firme, lúcida e forte. Ela faz parte dos milhares de aposentados e pensionistas do estado do Rio de Janeiro que não recebem seus salários e seu décimo terceiro.
Não é preciso ter formação jurídica para compreender a posição do Judiciário fluminense. Na mesma sentença citam que  “os atrasos não configuram vexame, sofrimento ou humilhação, não interferem no psicológico dos servidores” ou seja, os atrasos não geram problemas estruturais no cotidiano dos servidores. Mas a sentença é encerrada com a ressalva de que os processos merecem outro desfecho se “da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”. Que malabarismo tortuoso e canhestro é este?
Não costumo apresentar em meus textos situações dramáticas que possam produzir adesão dos leitores. Primo por argumentações de outra ordem. Então creio que posso fazer uso da descrição dos fatos desta segunda para enviar ao Judiciário uma outra possibilidade de pensar sofrimento, humilhação e dignidade.
Tenho participado destes atos desde fevereiro de 2016. E o que havia de diferente nesta segunda? Em primeiro lugar a percepção da intensidade do crime praticado por este governo e estampado nos jornais e entrevistas com o mote de crise e incerteza do pagamento da folha de maio. E os depoimentos que exemplificam o sofrimento vivido. Sofrimento este que os juízes dizem não ocorrer. Cada um dos servidores que fizeram uso da voz, apresentaram um caso de morte em hospitais (por infarto e outras doenças que têm se agravado nos meses recentes), depressão e em alguns casos, tentativa de suicídio. Na fala de Dona Maria, particularmente, pela crueza de sua situação, alguns não puderam conter as lágrimas. Foram abraçá-la!
As 12:30 aproximadamente, um grupo de 5 pessoas foi recebido na secretaria de Fazenda para uma conversa com Gustavo Barbosa que enviou um preposto que tentou comprar todos os pacotes de amendoim de Dona Maria. Esta, se negou a vender, como forma de demarcar que sua dignidade não estava à venda.
No dia 13 de julho em entrevista ao G1, Gustavo Barbosa foi enfático sobre a decisão de pagar algumas categorias (como Educação e Segurança, e claro, Justiça): “atualmente o Estado não tem capacidade de liquidar totalmente a folha de servidores e tem de fazer escolhas. É uma decisão de estado”.
São decisões de Estado que levam carpinteiros de 65 anos a procurarem seus direitos e enfrentarem toda a burocracia estatal desumana, como Daniel Blake, filme que os amigos do Cine Marighella exibem no dia 29 deste mês. Em tempos de Reforma Trabalhista, este é um filme obrigatório. No Reino Unido, na França, nos Estados Unidos, a burocracia estatal deixa morrer e faz  viver de acordo com suas decisões. É o caso do furacão Katrina que causou 1836 mortes diretas em agosto de 2005. É a crise humanitária vivida na União Européia que tenta “distribuir” os refugiados entre os países membros como um “custo” com o qual todos devem arcar.
Para fechar este texto voltemos ao século XVII no reinado de João Carlos V. A cena: João governando com a espada, o povo, subserviente atendendo aos seus desejos e desmandos. Era não só o soberano mas tinha sob seu poder a terra, a lavoura, os bens e as vidas. A espada, sempre visível, caía sobre as cabeças que seu soberano escolhesse. Vidas nuas. Vivam aqueles que obedeciam, morriam os demais.
O Estado moderno, a partir de suas políticas de fazer viver, controla as epidemias, controla a natalidade, fecha a fronteira aos refugiados, ordena ações nos morros e áreas indígenas. Mas também precisa de braços para manter sua burocracia.  E no Rio de Janeiro, opta por deixar morrer os aposentados, tal qual João Carlos. E seu instrumento de ação é o Judiciário que sentencia à morte milhares de pessoas quando sequer reconhece como crime, o não pagamento dos salários e ainda ironiza os servidores. Para o Estado, isto não passa de mero aborrecimento.
 Luciane Silva é presidente da Aduenf na gestão Resistência * Luta (2017-2019)

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